Enquanto o Brasil enfrenta uma crise sanitária sem precedentes, preocupa-se com uma possível crise institucional e anseia pela prometida reforma liberal, que torne o Estado mais eficiente e verdadeiro promotor do desenvolvimento econômico, a iminência do calendário eleitoral provoca uma corrida atabalhoada e equivocada por uma suposta reforma de um tributo que não precisa ser reformado, muito menos desse modo e nesse momento.
Existem outras prioridades na agenda tributária e soluções melhores para o financiamento do Estado brasileiro.
Nos momentos de crise é ainda mais importante termos consciência do risco em adotarmos uma reação emocional e irracional. Os princípios devem nortear a ação, para que o resultado não seja o arrependimento. E em se tratando de qualquer tipo de nova norma tributária, os cânones, ou princípios de tributação formulados por Adam Smith em sua obra A Riqueza das Nações, há mais de 240 anos[1], permanecem atuais como nunca, apesar de toda a evolução tecnológica que transformou o mundo durante esse período.
Os quatro princípios elencados pelo economista inglês (não nessa ordem) são os da (i) igualdade e equidade (capacidade contributiva), (ii) conveniência de pagamento,(iii) economia no recolhimento e fiscalização e, um dos mais importantes (iv) certeza da imposição (regras claras, definidas e não arbitrárias).
Esses princípios deveriam nortear a formulação das alterações de propostas tributárias no Brasil – como já o foram, por ocasião da elaboração das normas que estariam agora sendo alteradas – mas o que pode ser observado no pacote tributário representado pelo PL 2.337/2021 é que todos os princípios elencados foram claramente desconsiderados ao longo do projeto.
Ressalvada a mais do que devida, embora ainda parcial, correção monetária da tabela do imposto de renda das pessoas físicas, todos os demais pontos do projeto falham em um ou vários dos princípios citados. É um verdadeiro projeto de “contrarreforma” tributária, nas palavras sempre precisas do ex-secretário da Receita Federal do Brasil, Everardo Maciel. Como são muitas propostas de mudanças, trataremos somente as que consideramos mais relevantes no momento.
Pacote tributário perigoso
O PL 2.337/2021 é na essência perigoso porque consegue ser ao mesmo tempo retrógrado, equivocado, gerador de maior complexidade na interpretação e arrecadação, indutor de litigiosidade e sonegação e além de tudo promove evidente aumento de carta tributária, pois esse é o seu objetivo declarado. Isso tudo conduz ao grande perigo de aumentarmos o “custo Brasil”, desincentivarmos ainda mais o ingresso de investimento externo e até mesmo desencorajarmos o investimento do empresário brasileiro no seu próprio país.
O Brasil já é o campeão mundial de complexidade tributária, com um número de horas para arrecadar os tributos que corresponde a 10 vezes (!) o custo médio da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Decididamente não precisamos de mais complexidade no nosso sistema tributário. Mas é isso exatamente o que propõe esse projeto.
O risco dessa proposta foi tão evidente que conseguiu, de forma inédita, aglutinar a rejeição, inclusive por manifestos públicos, por parte de diversas associações de estudos tributários, como a ABDF, das representações dos Estados e dos Municípios, de representantes da sociedade civil, de inúmeras associações empresariais, da Frente Parlamentar para o Empreendedorismo e até mesmo de dois ex-secretários da Receita Federal do Brasil.
Um dos principais pontos criticados no pacote foi a reintrodução da tributação sobre a distribuição de dividendos. A não tributação sobre dividendos foi introduzida no Brasil em 1995, com a opção pela concentração dos tributos sobre a renda na própria pessoa jurídica. Essa opção decorreu de consultas internacionais da Receita Federal para aperfeiçoar o nosso sistema tributário e tem sido um sucesso desde então.
Um dos principais benefícios dessa evolução legislativa foi evitar a verdadeira máquina de autos de infração, insegurança jurídica, e ineficiência que eram as discussões incessantes e intermináveis relativas à distribuição disfarçada de lucros (DDL), que inundavam os tribunais administrativos da época. Todo esse trabalho de enxugar gelo foi rápida e cirurgicamente eliminado com a não tributação dos dividendos. Exatamente a mesma que o projeto propõe ressuscitar das cinzas como um zumbi, para aterrorizar os empresários.
E o zumbi ressuscita mais agressivo, pois agora as regras foram ampliadas com a obrigatoriedade de laudos de avaliação para cada transação sob escrutínio.
A reintrodução da tributação dos dividendos já está provocando a necessidade de ajustes durante a própria tramitação do projeto, além de criação de mais regras específicas como nos casos de holdings, setor imobiliário e o agronegócio. É o prenúncio da tempestade que está por vir.
O projeto também não ressalvou dessa tributação a distribuição de lucros já auferidos antes de sua entrada em vigor. Isso certamente resultará na judicialização do que for distribuído nessas condições ou no endividamento desnecessário das empresas para terem caixa que suporte a distribuição de todos os lucros acumulados este ano. Mais um custo desnecessário e um perigo adicional à saúde financeira das empresas.
Além do fim da tributação dos dividendos, outra inovação introduzida de forma conjugada em 1995 foi a tributação dos juros sobre o capital próprio (JCP). Ela tinha por objetivo principal estimular o investimento nas empresas através de capital ao invés de empréstimo e foi novamente um sucesso, sendo um ponto de especial atração para o investimento internacional no Brasil através de injeção de capital nas empresas ao invés do endividamento, que já era uma preocupação à época.
Pois bem, o regime de tributação dos JCP, criado na década de 90, que está agora sob ataque no congresso nacional, não só foi extremamente positivo para o Brasil, atingindo os seus objetivos, como legislação semelhante já foi adotada por outros países tais como Bélgica[2] (2005), Portugal (2008), Itália (2010), Chipre (2015), Malta (2018) e Polônia (2020). E para completar o quadro, a própria União Européia divulgou, em 21 de junho deste ano, uma iniciativa (Debt-equity bias reduction allowance – DEBRA) que reconhece a adoção dessas legislações por países membros e anunciou o desenvolvimento de estudos para uma proposta legislativa no primeiro trimestre de 2022.
Como pode ser observado, o PL 2.337/2021 vai exatamente na contramão dos países desenvolvidos, que estão ampliando a adoção do regime de JCP ao invés de eliminá-lo.
Esses são só os dois exemplos mais marcantes do perigo que o PL 2.337/2021 traz ao país. Não precisamos retroceder a evolução do nosso sistema tributário e não precisamos aumentar a complexidade e a insegurança jurídica. Precisamos é rejeitar esse pacote tributário.
Pacote tributário inoportuno
A necessidade de uma ampla reformulação da tributação da renda não se apresenta no momento e mesmo que houvesse, não deveria ser tratada com a injustificável urgência e o açodamento que tem sido demonstrado na tramitação do PL 2.337/2021. Ademais, inexiste transparência nos cálculos apresentados o que -ao contrário do que o governo federal sugere – demanda ainda mais cuidado na sua análise e verificação.
Por outro lado, se a nação requer alguma reformulação tributária de amplo espectro, essa certamente não é na tributação da renda, mas sim na tributação do consumo, em discussão no Congresso Nacional desde 2019, que também enfrenta as suas próprias dificuldades.
Pacote tributário desnecessário
Por fim, o pacote é desnecessário e não só porque a arrecadação tributária federal do primeiro semestre foi a melhor da série histórica, iniciada em 1995. E nem porque o ministro da Economia afirma que os dados confirmam uma trajetória crescente e sustentável das receitas do país. Mas sim porque a União detém plena capacidade de financiar os programas sociais que pretende através de (i) melhor aproveitamento das suas receitas originárias e (ii) de uma reforma administrativa que reduza o custo do Estado e o torne mais eficiente.
Podemos citar o bom exemplo do Estado do Rio de Janeiro, que obteve R$ 10 bilhões de reais somente com a venda da CEDAE e acabou de lançar um grande programa de investimentos.
E outro bom exemplo vem da própria União, que recentemente lançou um “feirão de imóveis” para alienar nada menos que 1.263 imóveis só na cidade do Rio de Janeiro (sim, o número é esse mesmo[3]), com base na Lei. 14.011/20, que facilita as condições de venda de imóveis da União. Esperamos que esse novo marco legal facilite a promessa do então futuro ministro da Economia de arrecadar R$ 1 trilhão somente com a venda dos imóveis federais. Isso sem contar com as privatizações.
Este tipo de iniciativa vai ao encontro de um dos maiores anseios do país que é uma urgente reforma da AdminIstração Pública. Esperamos que esta reforma possa gerar um Estado comparável em eficiência e custo às principais nações do mundo. Esta é a comparação que precisamos buscar na OCDE e implementar, com urgência. Não a da tributação dos dividendos. Essa última é totalmente desnecessária.