Em abril de 2021, o governo brasileiro aprovou uma Medida Provisória que muda todo o sistema de cargos da Administração Pública Federal. A Medida foi anunciada como um dos prenúncios da reforma administrativa, que consta na agenda de mudanças a ser empreendidas pela atual gestão. Entretanto, ainda que a MP modifique substancialmente a estrutura de cargos do Executivo Federal, o texto foi pouco discutido pela mídia e consequentemente o debate público sobre seus dispositivos tem sido praticamente inexistente. Acontece que as regras estabelecidas pela MP podem trazer grandes impactos para a burocracia e, dessa forma, para a eficiência e a capacidade do Estado em implementar suas políticas.
No Brasil, existem duas formas predominantes de ingresso no serviço público: concurso público e livre provimento. Há pouco o que dizer sobre os concursos: consistem na realização de provas organizadas por bancas selecionadas. Ainda que esteja longe de ser uma forma perfeita de seleção – dificilmente uma prova é capaz de captar todas as competências necessárias à função pública – o concurso confere, ao menos, certo nível de impessoalidade.
Por outro lado, a chamada “entrada lateral” (ou livre provimento), na qual indivíduos são livremente indicados pelas autoridades para assumir determinadas funções de direção, é um objeto de controvérsias não apenas entre os estudiosos da burocracia, mas nos corredores da Administração e nas conversas informais sobre política. Ainda que a competência formal da nomeação pertença ao presidente ou aos ministros, com a supervisão da Casa Civil, sabe-se que, na prática, as indicações são feitas por dirigentes de forma geral, em alguns casos contando ainda com a intervenção de atores políticos, entre eles os partidos.
Nesse sentido, o termo “patronagem” designa a prerrogativa que os partidos políticos possuem em indicar pessoas para compor quadros da burocracia. Em algumas regiões, trata-se de uma competência formal, ou seja, determinada pelas leis. No caso dos Estados Unidos, por exemplo, a nomeação a certos cargos depende do aval do Senado Federal.
Em outros contextos nacionais, como o Brasil, trata-se de uma prática totalmente informal, isto é, algo que não está previsto expressamente na lei, embora tampouco seja proibido. Assim, o termo “patronagem” é frequentemente utilizado de forma pejorativa em referência à alocação de cargos públicos em troca de apoio político. Se, por um lado, é necessário destacar que a discricionariedade nem sempre leva à nomeação de indivíduos incapacitados para cumprir as funções; por outro, seu excesso também pode trazer riscos à Administração Pública. Em contraste à visão maniqueísta e unilateral sobre o livre provimento, é preciso reconhecer que tanto as vantagens quanto os riscos do livro provimento.
No que tange aos inconvenientes, a nomeação de pessoas externas ao serviço público pode contribuir para aumentar a instabilidade – já que estão mais sujeitas à rotatividade – e perda de memória institucional, uma vez que pessoas sem experiência em termos de Administração Pública usualmente desconhecem os pormenores dos processos burocráticos. Dessa forma, é preciso combater tanto a falta quanto o acesso.
A MP nº 1.042, de 2021, flexibiliza excessivamente a entrada no serviço público transformando a maioria esmagadora dos cargos públicos em livre provimento em direção oposta aos esforços de profissionalização da burocracia das gestões anteriores desde a reinauguração da incipiente democracia brasileira. Desde a década de 90, os esforços em direção à racionalização se concentraram na tentativa de construir um modelo pautado mais no mérito e menos no personalismo, elemento central das críticas à política brasileira. Na contracorrente desse movimento, a nova Medida aumenta substancialmente a arbitrariedade das nomeações no serviço público.
De forma resumida, a MP transforma os cargos e as funções da administração direta, autárquica e fundacional em Cargos Comissionados Executivos (CCE) e Funções Comissionadas Executivas (FCE). Antes existiam os cargos de Direção e Assessoramento (DAS), compostos de seis níveis hierárquicos (quanto maior o nível, maior a responsabilidade), e as Funções Comissionadas do Poder Executivo (FCPE), destinadas exclusivamente aos servidores de carreira, ou seja, aqueles cujo ingresso originário ocorreu por concurso público.
Em 2005, um decreto estipulou um percentual de cargos DAS a ser destinado exclusivamente para servidores de carreira. A partir de 2017, esse percentual passou a ser 50% dos cargos DAS 1-4 e 60% dos DAS 5-6. Vale ainda ressaltar que parte relevante de tais cargos livre provimento já era destinada a servidores de carreira mesmo antes da aprovação dos decretos, segundo dados do Atlas do Estado Brasileiro.
As vantagens em alocar funções de gestão para servidores de carreira residem na estabilidade de tais funcionários, na expertise que possuem em relação aos processos administrativos, assim como na vinculação ao órgão. Diferentemente do que muitos pensam, a estabilidade não é meramente um prêmio, mas uma garantia de que os funcionários terão certa autonomia perante as pressões políticas ainda que a falta de um sistema mais sério de avaliação de desempenho resulte em um dos principais gargalos do serviço público.
A MP amplia os níveis hierárquicos de seis níveis para 18 nos casos do CCE. Desse total, apenas os níveis de 1 a 4 (cujas remunerações são irrisórias) são obrigatoriamente destinados a servidores de carreira – deixando todos os níveis mais importantes em termos de gestão (CCE 5 a 18) no escopo da liberdade dos dirigentes responsáveis pela nomeação.
Assim, em vez de tratar dos reais problemas do serviço público – falta de mecanismos de avaliação de políticas, ausência de sistemas de avaliação de desempenho, desigualdade em termos de planos de carreira, entre outros – essa dimensão da reforma administrativa atinge um elemento que pode gerar ainda mais ineficiência pública ao aumentar excessivamente a arbitrariedade das nomeações. Soma-se a isso a total ausência de critérios bem-definidos e de processos seletivos claros para o cumprimento de tais funções.
Nesse sentido, vale destacar que, ainda que o Decreto nº 9.727, de 15 de março de 2019, tenha estabelecido critérios relativos aos perfis dos/as nomeados/as, o próprio regulamento permite excepcionalidade, a qual pode ser utilizada como pretexto, pelas autoridades, para nomear pessoas que não atendam aos critérios.
Ao deixar tais nomeações livremente a cargo apenas das autoridades, sem nenhum controle social, corre-se o risco de inserir indivíduos pouco engajados e sem as competências necessárias para o desempenho das funções públicas. Sobre esse aspecto, vale ressaltar que uma burocracia eficiente é pré-requisito para a qualidade dos serviços públicos. Assim, cabe questionar qual é a intenção política por trás de tal medida.
Seria um mecanismo para permitir a entrada lateral de que tipo de burocrata? Será que o aumento da discricionariedade faz parte de uma estratégia de ocupação do serviço público? Para quais fins? Não seria o excesso de arbitrariedade uma forma de favorecer relações pessoais ou clientelistas? E, enfim, quais serão os impactos de tal arbitrariedade nos perfis e desempenhos dos novos burocratas? Essas questões, assim como outros aspectos da Administração, evidentemente mereciam maior destaque na esfera pública. Infelizmente, o ruído tem sido pouco e o debate praticamente inexistente.